O banco nos acompanha pela floresta

Ignácio de Loyola Brandão

Engenheiro agrônomo, Miranda comunicou à mulher que teria de passar quase um mês e meio no Acre, em plena floresta amazônica.

– No Acre? E 40 dias?

– Pois é. É o meu trabalho.

– Na floresta? Como vamos nos comunicar?

– Fique tranquila, celular pega lá. Já andou mal, mas fizeram várias estações, torres. Tem satélite, a coisa mudou neste mundo.

– E se eu tiver problemas de dinheiro?

– Caliandra, minha querida, você tem conta no banco, tem dinheiro, tem cartão, tem crédito.

Caliandra. Além da beleza, tinha sido esse nome estranho, misterioso, o que atraiu Miranda.

– Nunca ouvi nome igual – ele tinha dito quando se conheceram. – O que quer dizer?

E ela:

– É uma flor. Meu pai não queria, mas minha mãe gostava, ouviu numa novela ou viu num livro, achou lindo, colocou. É a flor-do-cerrado, também chamada esponjinha. As flores aparecem na primavera e verão, são pequenas, de um vermelho vivo, e duram pouquíssimo. Quando colocamos caliandra em vaso de água, morre logo.

Foi paixão imediata.

– E se houver uma emergência? – ela perguntava agora.

– Me liga, que resolvo.

– Do meio da floresta?

– Do meio da floresta, do deserto, do polo. O Brasil é outro, meu amor! O mundo também.

– Verdade. Eu é que fico muito em casa, me desligo um pouco.

Miranda partiu. Apesar do que dissera à mulher, estava um tanto preocupado também. Era sua primeira vez na floresta, sobre a qual dizem tantas coisas boas e ruins. O problema da comunicação o deixava mais apreensivo – não podia perder contato com a chamada “civilização”, era homem de cidade, precisava estar conectado. Desceu em Rio Branco, um jipe com tração nas quatro rodas o esperava, partiu para um acampamento no interior da floresta, começou o trabalho.

No primeiro dia, sentiu-se esmagado pelo gigantismo das árvores, misto de opressão e solidão. No segundo, no frescor das trilhas, no silêncio cortado por gritos de animais, pios de pássaros, sons estranhos que ele não identificava, percebeu uma grande paz a invadi-lo.

Passou por um acampamento de serrarias clandestinas desbaratado pela polícia, viu árvores gigantescas cortadas, deitadas, mortas, e se tocou de que havia coisas erradas. Foram entrando mais e mais, chegaram a Tarauacá e penetraram no estado do Amazonas, onde havia um posto avançado. Por hábito, quase TOC de ser humano hoje, Miranda vigiava o celular. Percebeu que havia sinal, respirou aliviado. Mas até quando? E se desse pau? Prosseguiu. A imagem daqueles gigantes derrubados, inermes, arrasados por motosserras, o perseguia. Naquela tarde, o celular avisou: “Pagamento mensalidade apartamento”.

Ilustração da Crônica: O Banco Nos Acompanha Pela Floresta

Havia sinal. Miranda acionou a senha e fez a transação, pedindo que imprimissem na impressora de casa, Caliandra recolheria. Continuou o trabalho. Percebia que às vezes o telefone desaparecia, perdia contato com o mundo, de repente voltava. Todos na empresa garantiam que era assim, mas que funcionaria sempre, nada daria errado. Ele intranquilo, é difícil libertar-se de condicionamentos.

Semanas passavam. Tomado pelo encantamento, aprendia sobre ervas que curam, a medicina fitoterápica, como sobreviver na selva. Agora conhecia raças de animais em extinção e os trabalhos de proteção. Outro mundo. Uma semana depois, novo alerta: “Transação em shopping fora de seu perfil. Compra de computador. Aceitamos ou cancelamos?” Cancelou. Logo em seguida, supostamente do serviço de segurança dos cartões, pediram que desse o número do cartão, a validade, o endereço, o CPF. Ele sorriu e respondeu: “Peçam à polícia”. Dar dados pelo telefone?

Certo dia, estavam numa aldeia indígena e o celular tocou. Miranda sacou num relance. Não era para ele. Ficou surpreso ao ver vários índios com telefone na mão ao mesmo tempo. Logo quase todos guardaram – um jovem atendeu.

Os dias passando, Miranda maravilhava-se com a floresta, que parecia esmagar o ser humano ao mesmo tempo que oferecia proteção e alimento. Era símbolo de vida. Entendia o que chamavam de sustentabilidade e defesa, que muita gente ironizava, principalmente certos políticos. Vez ou outra, recebia chamados; a vida continuava organizada, transações efetuadas. Naquela manhã, ele, dois funcionários e o guia pararam ao pé de uma arvore colossal, as grossas raízes formando como que uma caverna, um abrigo. O celular alertou: “Investimento no banco deve passar para a conta ou ser reinvestido pelo mesmo prazo?” Miranda alegrou-se, tinha esquecido, o dinheiro vinha a calhar. Passou para a conta, ligou para Caliandra, avisou-a. Nesse momento, o guia aproveitou:

– Sabe que árvore é esta?

– Não tenho ideia, mas é avassaladora.

– É a sumaúma, nossa maior árvore. Rainha, mãe da floresta. Estamos abrigados entre as raízes, como os índios fizeram por séculos.

Séculos mesmo. Ficaram em silêncio – a árvore impunha respeito sagrado. A admiração cresceu quando o guia acrescentou:

– Perceba que curioso, simbólico até: o senhor recebeu o telefonema ao pé dela. Vi que todos esses dias o senhor esteve ligando para São Paulo, falando com os bancos, resolvendo coisas. Poucos sabem que, há muito tempo, a sumaúma era o telefone indígena. Assim como hoje temos inúmeras torres de celular espalhadas pela floresta – torres que nos ajudam a protegê-la, porque são a ligação com o Brasil e o mundo –, a sumaúma era usada como meio de comunicação, através de um batuque praticado nas raízes. Cada ritmo do batuque era uma mensagem codificada. O som ecoava de tronco em tronco e prosseguia até muito, muito longe.

Miranda viu passado e presente, viu o futuro, o tempo dissolvido entre o pequeno celular e a monumental sumaúma. A árvore o ligava a eras remotas, mas ele continuava conectado com seu mundo, seu próprio tempo. Olhando para o aparelho, sorriu, tranquilo. Afinal, seu banco estará sempre perto, mesmo num floresta longínqua.