Como viver com o “não dinheiro”?

Ignácio de Loyola Brandão

Antônio de Santa Adélia, como era conhecido por ter nascido naquela pequena cidade do interior paulista, chegou apreensivo para o almoço:

– Sabe que o dinheiro está acabando?

– O seu? Com a crise, a vida apertou? Você estava bem, aposentou-se em alto cargo público. Vai ver foram as festas, as baladas, as mulheres rápidas…

Pura ironia. Antônio, dado a pesquisas de filologia, era conhecido como o mais regrado dos seres humanos. Não se casara. Não saía nunca, não viajava. Sua casa era seu domínio, e a ela voltava nos mesmos horários.

– Que meu dinheiro? O meu está no banco, bem guardado. Digo o dinheiro corrente, palpável. As cédulas, as moedas, o dinheiro que circula.

– Qual é, Antônio? Está pirando?

– Olho a vida, observo o dia a dia. Não percebeu ainda que as padarias, as quitandas, os cafés, os supermercados, os quiosques, os ônibus, os jornaleiros não têm mais troco ? Arredondam as contas para baixo ou para cima. Eu mesmo, na padaria, tenho meu acordo com o caixa. Um dia, devo eu. No outro, ele é que me deve. De vez em quando, a conta bate. Os preços estão tendo os centavos eliminados. Quase nada mais custa 3,75, ou 5,30, ou 14,99. Isso provocava uma bagunça! Agora é 3,50, ou 4,00, ou 5,50. As lojas de 1,99 vão ter de mudar para 2,00.

– E aonde foram as moedas?

– Acho que emitem cada vez menos. As pessoas levam e os centavos desaparecem em gavetas, no fundo de bolsas ou bolsos, sei lá mais onde. As cédulas pequenas, então, evaporaram.

Antônio consultou um amigo, editorialista econômico de um grande jornal, e este garantiu:

– É verdade, as moedas estão sumindo. Ninguém deu muito valor, elas foram ficando esquecidas. Também as cédulas menores não são levadas em conta. Está na hora de o sistema financeiro começar a pensar no problema. Vou escrever um artigo sobre o fim do dinheiro.

Antônio refletiu:

“Será que está na hora de desinventar o dinheiro?”

Etimólogo, ele tem a imaginação fértil, é cheio de fantasias. Conversando comigo, disse:

– Desinventar o dinheiro e colocar o que no lugar? E os bancos? Acabam? Já imaginou a catástrofe? E o sistema financeiro?

Ilustração da Crônica: Como Viver Com o “Não Dinheiro”?

Antônio não tem apenas imaginação. Tem ideias curiosas e conhecimento de história. Continuou:

– Por exemplo, veja o fogo, a maior descoberta da humanidade. Ele veio mudando. Primeiro era obtido com dois paus friccionados um no outro, ou com as pedras que produziam faíscas. Depois vieram os fósforos, a ignição elétrica. Hoje, se não há fogo, você tem o micro-ondas, o fogão elétrico, as chapas, os ebulidores e assim por diante. Entende?

– Acompanho… E o dinheiro?

– O dinheiro será diferente. Terá outro formato, se é que terá formato. Se é que será palpável. Diga: quem anda com dinheiro no bolso com toda esta violência, medo, neurose? Pense bem. Quantos pagam com dinheiro? Pagam por cartão de crédito, transferências pela Internet e milhares de outros recursos que os bancos criam a cada instante. Pois já não existem celulares que a gente aproxima dos caixas e ele executa o pagamento? É a tecnologia por aproximação. O que circula já é virtual – não se pode pegá-lo, tocá-lo, levá-lo no bolso. O sujeito afirma que tem milhões ou bilhões, mas não existe cofre em banco com todo esse dinheiro. É assim: “Possuo tanto, sabem que possuo. Acreditam que possuo. Portanto possuo”. E se eu dissesse ao sujeito “Te pago oralmente”? Acompanho o indivíduo, ou mando e-mail, ou faço transferência pela Internet.

– Não entendo muito bem.

– São ideias em gestação, precisam ser debatidas, aprimoradas, testadas. Um país sem dinheiro para colocar na bolsa, nas carteiras, nos bolsos, nem deixar na gaveta. Haveria menos assaltos: os ladrões saberiam que ninguém mais leva dinheiro consigo.

– É tudo na palavra? E a palavra funciona?

– Cada um terá um cartão. Dentro dele, terá seus microchips, com saldos, extratos, espécie de caixa de conveniência móvel. Na hora de pagar alguma coisa, usando o calor da mão como senha identificadora, o cartão autoriza, e você transfere a quantia necessária para a loja, restaurante, bar, banco, hotel.

Antônio de Santa Adélia falava cheio de convicção e ardor. É fascinado por ideias visionárias, futuristas, visando a tornar o cotidiano mais cômodo. Agora, o não dinheiro estava em pauta na sua mente exacerbada.

Um banqueiro com quem almocei não achou a coisa maluca, não. Disse que os bancos sofreriam menos assaltos, não haveria carros-fortes. Nem cofres – espaços imensos e caros. A Casa da Moeda não gastaria em metal nem em papel, os caixas das agências não teriam gavetas com divisões, a saúde ganharia com a ausência de contato com o dinheiro passado de mão em mão. E não haveria mais portas giratórias. Provavelmente demoraria para que a população se acostumasse e se adaptasse – não há quem não goste de um dinheirinho no bolso. Mas logo entraria no esquema. As agências continuariam a trabalhar com investimentos, financiamentos, créditos, seguros, poupanças, empréstimos. Enfim, com todas as atividades estabelecidas desde que os bancos foram criados.

Dei com Antônio saindo de um banco. Interpelei-o:

– Esqueci de te fazer uma pergunta. E se essa desinvenção não der certo?

– Algum terá de reinventar o dinheiro. Como viver sem?