A vida passa por dentro de uma agência

Ignácio de Loyola Brandão

Ele entrou, os gerentes se entreolharam. “Quem vai atendê-lo hoje?” Riram amistosamente. Conheciam o dr. Luís Ernesto. Gostavam dele, advogado que não demonstrava seus 86 anos, sempre elegante, sapatos engraxados, num tempo em que engraxates e sapateiros estão em extinção.

Ele tinha seus hábitos. Entrava, dirigia-se aos caixas eletrônicos, esperava o auxílio de um atendente. Fingia que errava a operação, pedia:

– Como faço aqui?

Perguntava o nome do bancário, esmiuçava a vida do sujeito, aconselhava:

– Meu filho, você tem emprego ou trabalho?

– Não é a mesma coisa?

– Nem um pouco. Emprego é para se sustentar, pagar as contas da vida. Trabalho é o que fazemos pelo sonho. Seja qual for sua escolha, pense sempre em como mudar as coisas, evoluir.

– Sou um simples estagiário.

– E daí? Já procurou saber a história do presidente aqui deste banco? Veja como as carreiras são construídas. Muito caixa chegou ao ponto mais alto. O dr. Luís Ernesto era cheio de histórias. Tinha passado anos em júris. Não era daqueles chatos que perturbam com picuinhas, política rasteira. Conduzia o papo, extraía confissões, ouvia aflições, boas anedotas, recomendava livros. Dia desses, ele saía com duas caixas que iam almoçar e deram com uma senhora que trazia um pacote de balas e uma sombrinha colorida. A mulher indagou:

– É aqui que deposito minhas balas?

– Não, minha senhora. Aqui se deposita dinheiro.

– Mas bala é dinheiro! No supermercado, na quitanda, na padaria, sempre que não tem troco, me dão balas e dizem: “É o mesmo que dinheiro”. Não entendo.

O advogado olhou para as caixas, que fizeram um gesto: “Deixe conosco, estamos acostumadas”. Conversaram cinco minutos, a mulher se foi, agradecida.

– De vez em quando acontece. É gente simples, nem tem conta. Explicamos que não é bem assim, muitas vezes elas conseguem trocar em lojinhas, em lanchonetes, que precisam de troco. Cada uma que ouvimos aqui! Histórias assim suavizam, principalmente em dias de movimento. Sinal dos tempos: parece que as moedas vêm desaparecendo, dr. Ernesto.

– E não sei?

Ilustração da Crônica: A Vida Passa Por Dentro de Uma Agência

Na agência, as pessoas olham o advogado com curiosidade porque ele puxa duas senhas, uma normal, outra de prioridade. A surpresa é que, quando a senha dele é chamada, o dr. Luís Ernesto a passa a alguém e retira outra, volta a sentar, puxa conversa. Numa tarde chuvosa de fevereiro, ele me disse:

– Gosto de saber da vida de cada um. Já prestou atenção? Todos ficam com o olhar fixo no monitor de senhas, ansiosos para ser atendidos. Ninguém entende que há tempo para tudo; explico que os caixas não demoram por vontade própria, há um ritmo, não é fácil, eles não podem se apressar e errar. Você já percebeu, não? A pessoa sai do calor da rua e entra num ar condicionado afetuoso, se me permite a palavra. Se quiser, tem lá no canto um bebedouro com água fresca. Em algumas agências, servem café expresso. Está tudo mundo tenso, correndo. Para onde, meu amigo? Dia desses, quando decidi ser atendido e me levantei, uma jovem se enfureceu. Deu piti… Não é assim que falam? Gritou: “Por que esses velhos têm direito de ir na frente?” Virei-me: “Minha menina, aprenda uma coisa. Você ou é jovem, ou já foi. Juventude é coisa que o tempo resolve”. Ela entendeu e sorriu, encabulada. Deixei-a ir no meu lugar.

Intrigado, indaguei:

– O que o senhor quer dizer com “Decidi ser atendido”? Se chamam, o senhor vai.

– Não viu que tiro várias senhas? Para ser atendido quando me der vontade. Muitas vezes, saio quando o banco fecha. Sei que vai me achar louco, não devo ter o que fazer. Pois tenho, ainda dou consultorias, trabalho quando quero. Tenho aqui uma boa conta e algumas aplicações. Em mais dois bancos, tenho investimentos diferenciados. Não se podem colocar todos os ovos numa cesta só – aliás, conselho dos próprios bancos. Gosto de acompanhar tudo; dinheiro não anda sozinho, precisa ser seguido, observado. Piscou, malicioso, e riu:

– Não há aquela frase, “Siga o dinheiro”? Converso com gerentes, eles me dão sugestões, e assim passo o dia.

– Mas o senhor pode fazer tudo isso em casa.

– E faço. Tudo pela Internet. Para que os bancos gastam dinheiro com tanta tecnologia? Para mim.

– Não entendo. O senhor não precisa sair, caminhar, estar sujeito a um incidente, um roubo, se expor ao sol. Ou a uma chuvinha como esta que começou agora. Em casa, com um bom computador, usando suas senhas, pode fazer as operações que quiser. Com todo o conforto.

– Posso. E aí não saio de casa? Não vejo ninguém? Não converso com ninguém? Não conheço ninguém novo, interessante? Lá em casa, converso com quem além de minha mulher? Como fico sabendo das vidas, das doideiras, das manias, dos sonhos das pessoas?

Todo tipo de gente, dos simples aos mais graúdos, como se diz. Como posso ajudar alguém? Vivi anos o escritório e os tribunais; gosto de gente. Sou vaidoso: adoro quando alguma mulher me diz que nem pareço ter a idade que tenho. E quando passa uma bela mulher e me olha? Precisamos dos olhares dos outros. Estamos todos cada vez mais isolados, meu amigo. Percebeu? Um banco, com toda a tecnologia, ainda é uma ilha de encontros, informações, vida; aqui vem todo tipo de gente. Além de ficar de olho em meu dinheiro – é, sei que poderia ter um assistente para fazer tudo –, vejo cada personagem! O senhor não pensou nisso? Os que entram e saem são o Brasil. É como se eu fosse um pesquisador; mantenho contato com a humanidade, sei o que o país pensa.

Tenho vários amigos aposentados. Eles se encontram no clube, no banco da praça, jogam dominó, dama, boliche ou bilhar. Essa não é a minha vida. Um dia, escrevo um livro. Sei de uma bela história de amor e sensualidade… Há também aventuras do dia a dia. Mas me desculpe, a gerente me chama; eles têm paciência comigo, fico esmiuçando as taxas baixas, os juros, reaplicando aqui e ali. Passar bem, meu senhor. Até a próxima. Cá entre nós, sabe o que gostaria de fazer? Ir a pé para casa. Debaixo de chuva. Não era bom na infância?

Desde então, passei a olhar as agências de modo diferente. Puxo até conversa.